31 de outubro de 2008

Coitados dos números

Coitados dos números.
Eles são distorcidos para que algumas organizações (ONGs, revistas, governos, empresas etc) consigam justificar (ou pelo menos tentar!) suas ações.
Conforme eu já havia adiantado AQUI, está circulando o "Guia Exame de Sustentabilidade". Uma das matérias apresentadas neste edição de 2008 é esta aqui (como de costume, com grifos meus):

O gerente comercial Rodrigo Bassi Menegocci, de 24 anos de idade, se lembra bem de um anúncio que viu tempos atrás na televisão, em que um fabricante de sabão em pó prometia plantar uma árvore para cada caixa vendida do produto. Embora Menegocci tenha ficado entusiasmado com o apelo ecológico, nem sempre ele opta por levar para casa aquele sabão em pó - ou qualquer outro produto menos agressivo ao meio ambiente. "Quando vou fazer compras, levo em consideração o aspecto ambiental, mas é preciso que o produto tenha qualidade e o preço seja honesto", diz.

Menegocci é o típico consumidor verde "pragmático", perfil detectado em uma pesquisa realizada pelo instituto Quorum Brasil com exclusividade para o Guia EXAME de Sustentabilidade. O levantamento, realizado em setembro, ouviu 200 moradores da cidade de São Paulo - homens e mulheres com idade entre 20 e 50 anos e renda familiar mensal entre 5.000 e 10.000 reais. De acordo com o levantamento, 74% dos entrevistados consideram-se consumidores preocupados com questões ambientais e 59% afirmam que produtos com apelo ecológico influenciam sua decisão de compra. Apesar das boas intenções, na prática o comportamento desse grupo é outro. A pesquisa revela, por exemplo, que 70% dos entrevistados desistem de comprar produtos com selo ambiental caso eles custem mais do que similares sem a certificação verde. Além disso, 47% dos consumidores afirmam que não deixam de comprar um produto mesmo sabendo que ele é prejudicial à natureza.

Os números indicam que a consciência ambiental é fortemente influenciada pelo fator preço. No entanto, na análise do consultor William Horstmann, sócio do Quorum Brasil e responsável pelo levantamento, só esse elemento não explica a contradição entre o discurso e a prática do consumidor. "O preço é um fator inibidor, claro, mas não o suficiente para uma pessoa decidir se leva ou não para casa determinada marca", diz. "Se o consumidor não age de acordo com o que diz, é porque falta informação sobre o assunto." Um dado revelador dessa falta de divulgação é o baixo número de marcas citadas espontaneamente pelos entrevistados quando o assunto é o meio ambiente - apenas nove marcas foram lembradas e a mais citada foi a fabricante de cosméticos Natura, mencionada por 18% dos entrevistados.

O levantamento do Quorum Brasil confirma os resultados de uma pesquisa similar realizada no ano passado pela consultoria McKinsey em oito países (Alemanha, Brasil, Canadá, China, Estados Unidos, França, Índia e Reino Unido). Nessa sondagem, 87% dos entrevistados se declararam preocupados com os impactos ambientais e sociais dos produtos que compram. No entanto, apenas 33% dos consumidores disseram que compraram ou pretendem comprar produtos socioambientalmente corretos. Um dos produtos que conseguiram furar essa barreira foi o Prius, lançado pela japonesa Toyota em 1997. Primeiro carro híbrido do mundo (combina o uso de energia elétrica com o de gasolina), o Prius custa 50% mais do que um Corolla, modelo básico da mesma fabricante. Mesmo assim, mais de 1 milhão de unidades já foram vendidas em todo o mundo.

Segundo especialistas, no Brasil a disseminação do consumo consciente depende, sobretudo, do aumento do poder aquisitivo da classe C. "Essa camada da população está encantada com o poder de consumo recém-adquirido", diz Thiago Lopes, gerente de planejamento da agência de publicidade Talent, que acaba de concluir um estudo no qual detectou nesse público certa indiferença em relação ao consumo orientado por valores responsáveis. "Não surte efeito algum falar em sustentabilidade quando o que essas pessoas querem, no momento, é realizar o sonho de ter um carro na garagem", diz Lopes.

Apesar da barreira econômica, seria arriscado para qualquer empresa ignorar a parcela de consumidores que seguem a cartilha do consumo responsável - um terço da população entrevistada pela pesquisa do Quorum Brasil. Entre os principais motivos citados por esses consumidores para a compra de produtos com apelo ecológico estão a preservação da natureza e a preocupação com o futuro da próxima geração. "A tendência é que o número de pessoas dispostas a assumir tais valores aumente", diz Heloísa Mello, gerente de operações do Instituto Akatu, organização não-governamental que promove o consumo consciente. Em pesquisa realizada há dois anos, a entidade verificou que 33% dos consumidores brasileiros são conscientes - têm um bom grau de percepção dos impactos coletivos ou de longo prazo em suas decisões de consumo e não se atêm aos aspectos econômicos ou aos benefícios pessoais imediatos.

De olho nesse tipo de consumidor, muitas empresas têm se esforçado para colocar nas prateleiras produtos ecologicamente corretos. É o caso da rede varejista Wal-Mart, que pretende transformar sua linha de marcas próprias em modelo de sustentabilidade. Já é possível, por exemplo, encontrar nas gôndolas do varejista cereais matinais com embalagens que levam o selo FSC, certificado ambiental do Conselho Brasileiro de Manejo Florestal, e cobertores produzidos com fio de poliéster feito 100% de fibra de PET. Além disso, a rede negocia com seus fornecedores o desenvolvimento de embalagens que reduzam a quantidade de material utilizado. "Até 2009, nossa meta é ter 100% das embalagens dos produtos de marca própria sustentáveis", diz Daniela de Fiori, vice-presidente de assuntos corporativos e sustentabilidade do Wal-Mart.

Para Mariana Cogswell, diretora de planejamento da agência Talent, o consumidor verde é, necessariamente, mais crítico e seu comportamento tende a influenciar cada vez mais o modo de produção das empresas. "Contribuir para o desenvolvimento sustentável não é mais uma questão de escolha da companhia, e sim obrigação", diz ela. A HP, uma das maiores fabricantes de equipamentos eletrônicos do mundo, percebeu isso há muito tempo. Na década de 90, o trabalho de recolhimento e reciclagem de cartuchos da empresa virou referência no setor. Agora, a HP se prepara para dar um passo adiante: em vez de doar os cartuchos coletados a uma empresa de reciclagem, em novembro a própria companhia deve começar a reciclar o material. Após passar por um processo de limpeza e moagem, o material plástico produzido será usado na fabricação de novos cartuchos. "Queremos criar uma cadeia produtiva auto-renovável", diz Kami Saidi, diretor de operações da HP para o Mercosul. "À medida que aumenta a conscientização, o consumidor leva em conta essas iniciativas na sua decisão de compra."
Vamos por partes, usando as informações disponíveis na matéria:

1) Um trecho grifado por mim traz a seguinte afirmação: 74% dos entrevistados consideram-se consumidores preocupados com questões ambientais e 59% afirmam que produtos com apelo ecológico influenciam sua decisão de compra (...) 70% dos entrevistados desistem de comprar produtos com selo ambiental caso eles custem mais do que similares sem a certificação verde (...) 47% dos consumidores afirmam que não deixam de comprar um produto mesmo sabendo que ele é prejudicial à natureza
Ok, quem me conhece sabe que matemática não é, exatamente, a minha praia.
Porém, quando se trata de estatísticas de pesquisas de mercado, sou chato pacas.
Vamos, então, às contas: se 74% dos entrevistados afirmam que são consumidores "preocupados com questões ambientais", como é possível que 47% dos entrevistados NÃO deixem de comprar um produto mesmo sabendo que ele é prejudicial à natureza ?

Ou estes 74% não sabem o que significa "ser preocupado com questões ambientais", ou então as respostas simplesmente não têm consistência, e deveriam ter sido descartadas pelos pesquisadores/analistas.
Afinal, vamos refletir um poquinho: se eu digo que sou "preocupado com questões ambientais" e depois admito que NÃO deixo de comprar um produto mesmo sabendo que ele prejudicará a natureza, ou eu sou muito hipócrita, ou então não entendi o que foi perguntado.

Deve ser considerado, neste âmbito, um outro fator: o perfil dos entrevistados.
A pesquisa buscou consumidores com renda superior a 5.000 reais (não foi citado se renda INDIVIDUAL ou se renda FAMILIAR, o que, numa pesquisa, faz TODA a diferença !). Pode-se concluir que é uma renda elevada, então o grau de escolaridade DEVE (provavelmente) ser também elevado (outro pecado da pesquisa: não citou esta informação!).
Assim, pressuponho que os entrevistados ENTENDERAM as perguntas (se bem que isso depende muito de como tais perguntas foram formuladas).


2) Posteriormente, lê-se a seguinte afirmação: Se o consumidor não age de acordo com o que diz, é porque falta informação sobre o assunto.
BOBAGEM.
Na verdade, se o consumidor não age conforme ele DIZ agir, há inúmeros fatores possíveis !

Vou levantar apenas UMA hipótese aqui: o consumidor DIZ que valoriza o meio-ambiente porque ele anda sendo massacrado por afirmações, geralmente em meios de comunicação pouco críticos, que praticamente obrigam este consumidor a declarar-se assim. Uma verdadeira coerção.
O entrevistado fica com vergonha de admitir que sempre adotou a filosofia da vaca com relação ao meio-ambiente.
Em tempo: a filosofia da vaca é a clássica expressão "tô cagando e andando". Cultura inútil - em doses homeopáticas, nunca faz mal a ninguém....
Em suma, o consumidor não valoriza REALMENTE o meio-ambiente, e a "sustentabilidade"; ele apenas afirma isso por receio de ser "politicamente incorreto".
Obviamente, somado a isso, a falta de informação não pode ser totalmente descartada - agora, isso é muito diferente do que foi declarado, haja vista que a conclusão do responsável pelo levantamento não dá margem para nenhuma outra alternativa capaz de "explicar" a discrepância. A única justificativa seria "falta de informação".
Ora, se as pessoas que ganham mais de 5.000 reais não têm informação, o que dizer da maioria dos brasileiros, que ganham muito menos do que isso ?!


3) A Exame não se cansa de distorcer os fatos - inclusive os números, né ?! Tudo no afã de justificar a razão de ser de produtos ruins como o próprio "Guia Exame de Sustentabilidade". Outro trecho auspicioso: Apesar da barreira econômica, seria arriscado para qualquer empresa ignorar a parcela de consumidores que seguem a cartilha do consumo responsável - um terço da população entrevistada pela pesquisa do Quorum Brasil.

Péraí...... QUAL CARTILHA DO CONSUMO RESPONSÁVEL ???????

Caramba, o texto acabou de informar que a maioria dos consumidores entrevistados não segue porra de "cartilha" nenhuma !!!!!!
Repito o trecho: 70% dos entrevistados desistem de comprar produtos com selo ambiental caso eles custem mais do que similares sem a certificação verde - isso por acaso é "seguir a cartilha do consumo responsável" ??????
Ora, a tal cartilha preconiza que "se o preço estiver acima dos similares que devastam o meio-ambiente, não há problemas em comprar mesmo assim" ?????
Que cartilha é essa ????????


4) A declaração da gerente de operações do tal Instituto Akatu eu nem vou comentar.
É tão tosca que vou me abster dessa tarefa desagradável - afinal, a "tendência" que ela cita veio de onde ? Coitados dos números.....


5) O trecho final, sobre a HP e o Wal-Mart, parece um conto de fadas, de tão bonito, né ?!
Mas qual foi o gasto destas empresas ? Qual foi o ganho ?
Obviamente, estou falando de DINHEIRO, sim.
Ao usar partes de cartuchos vazios na produção de novos, certamente houve economia, redução de custos......
Então, por favor, não sejamos hipócritas.

Que tal apresentar os números, os dados que comprovem que a escolha se deve à preocupação real com o meio-ambiente, e NÃO com a redução de custos e conseqüente aumento do lucro.

Obviamente, não tenho NADA contra o aumento da lucratividade. Muito pelo contrário - defendo, elogio e aplaudo.

Mas não sejamos hipócritas, né ?! Vamos dar nomes aos bois, ao invés de tergiversar, só para ficar parecendo "politicamente correto".

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